AnaMi vive com câncer metástico e orienta sociedade a mudar pensamento
Atribui-se a Benjamin Disraeli (1804-1881), escritor e ex-primeiro-ministro britânico, a frase “a vida é muito curta para ser pequena”. A sentença cai como um lema para a jornalista Ana Michelle Soares, ou AnaMi, como se identifica. Paciente de câncer de mama desde 2011, ela recebeu quatro anos depois de fazer tratamento o diagnóstico de que a doença tinha voltado e atingira outros órgãos. Não há cura para o câncer metástico.
Em vez ser espectadora da doença, AnaMi preferiu manter-se protagonista da sua sina. Criou perfis nas redes sociais para falar sobre o seu estado de saúde, da importância do tratamento paliativo, do diagnóstico precoce e do direito dos pacientes a serem cuidados com todos recursos que a medicina oferece a quem possa viver com uma doença crônica. Com a iniciativa, informou, sensibilizou e mobilizou pacientes, familiares cuidadores e até profissionais da saúde.
Em torno de sua história, e de conversas sobre a finitude da vida que manteve com a amiga Renata Lujan, que com a mesma faixa etária teve a mesma doença, AnaMi escreveu o livro “Enquanto eu respirar” (editora Sextante).
“Imagina como é bom poder viver sem o peso do que nos mantém numa existência mediana, vazia, sem significado. Cura pra mim é isso. Vai muito além da ausência de doença. Compreender que a finitude pode estar na próxima esquina é um convite para vivermos a vida que queremos viver. Com presença e intensidade. Entre o sopro inicial e último suspiro há muito a ser feito”, recomenda a jornalista no material de apresentação do livro.
Não há cura para o câncer metástico, mas AnaMi venceu a doença. “Eu nunca me vi perdendo para doença nenhuma”, disse ao repórter. Ela também escreveu um manual sobre tratamento paliativo e faz trabalho voluntário para atendimento a pessoas com doenças graves e ainda incuráveis. A seguir, os principais trechos da entrevista que ela concedeu à Agência Brasil por teleconferência por ocasião do Dia Mundial de Combate ao Câncer, este 8 de abril.
Leia a entrevista a seguir:
Agência Brasil – Que importância tem a passagem
do Dia Mundial de Combate ao Câncer?
AnaMi – Ao longo do ano tem várias datas que
servem de lembrete, e para que a gente fale disso: de câncer. É uma doença que
ainda tem muito tabu envolvido. Algumas pessoas nem conseguem falar o nome.
Mesmo estando em 2020, é comum ouvir, até de familiares, algo do tipo ‘aquela
doença’ ou ‘você está com aquele problema’. Nessas datas é uma oportunidade de
falar das pessoas que estão vivas. Nos enredos de filmes e novelas, quando
querem matar alguém de forma lenta e cheio de dramas e sofrimentos, o
personagem padece de câncer. Aí raspam a cabeça e seguem todos os dilemas…
Mas nem sempre é assim, depende do diagnóstico. Além disso, temos uma medicina
que está batalhando e há avanços. Já está na hora de falarmos em câncer como
uma doença crônica. Para muitos tipos de diagnóstico como é o caso do câncer
metastático, como é o meu, a gente vive muito tempo. Eu estou há nove anos em
tratamento e conheço pessoas que estão há 11 anos. Precisa tirar essa cara tão
tensa. Apesar de ser uma doença grave, há tratamentos para o câncer. Nessas
efemérides relacionadas a câncer, temos a possibilidade de falar sobre aquilo
que não é tão dramático. Não é só uma doença que mata e ponto. É uma doença
grave, mas tem tratamento. Precisamos falar sobre diagnóstico precoce e do medo
que as pessoas têm em descobrir essa doença. Com o diagnóstico precoce são
maiores as chances de ser curado. Sempre pedimos à imprensa que relate o real.
O real é: tem muita gente vivendo com a doença.
Agência Brasil – Dar visibilidade ao
câncer alterou a maneira como a sociedade encara a doença?
AnaMi – As biografias de pacientes ainda são
vistas com um certo desconforto. As pessoas acham que é uma história que a
autora escreveu que é a vitoriosa e que venceu o câncer. Eu não sou a
vitoriosa. Eu não tenho o perfil que as pessoas gostam de falar, aquele no qual
terminado o tratamento a paciente vira a guerreira sobrenatural do câncer. Eu
faço tratamento paliativo. Eu tenho uma doença chamada câncer metastático.
Nesse estágio não tem cura para a maior parte dos diagnósticos de doença
primários. A minha doença primária foi câncer de mama. Eu tenho metástase nos
ossos, no fígado, em órgãos abdominais, e em alguns pedaços do meu corpo. Eu
vou tratar até o fim da minha vida. Não tem cura, a menos que a medicina
descubra um tratamento que possa resolver o meu caso. Mesmo assim, uma editora
do porte comercial da Sextante, topou falar sobre isso. Vejo uma evolução
grande. O livro tem saído bem, quem está comprando não é só paciente e médico.
Há pessoas lendo o livro porque acham que tem alguma coisa para aprender.
Então, acho que começa a haver mudanças.
Agência Brasil – A publicação do seu livro
e a manutenção dos seus perfis nas redes sociais tiveram o propósito de dar
visibilidade e mudar o estigma?
AnaMi – Sim. Quando eu fui diagnosticada com a
metástase, em 2015, eu percebi que tinha muita rede social de paciente
primário, com apoio de ONGs, que são pacientes com possibilidades de cura.
Quando falam de câncer, falam sempre valorizando a história da vitória. É como
se só tivesse dois universos. Ou você vence a doença ou você perde. São
postadas coisas como ‘fulano perdeu para o câncer…’ Mas ninguém fala que
alguém perdeu para tal doença do coração ou para o diabetes. Transformam a
biografia e a história de alguém em um desfecho de fracasso. Eu nunca me vi
perdendo para doença nenhuma. Eu faço tanta coisa legal, apesar da doença. Não
existem só dois universos, ou vence ou perde. A gente desvaloriza a história
das pessoas que estiveram ali lutando contra doença. Mas elas escreveram suas
histórias. Eu criei um perfil por causa disso. Eu não sou a vitoriosa que
venceu o câncer, mas também não morri. Eu, então, comecei a falar abertamente
sobre isso: uma doença incurável que tem tratamento paliativo. As pessoas
tentam se convencer que daqui a pouco vão ficar boas. Isso gera um peso muito
grande para o paciente. Para quem tem metástase, não tem o daqui a pouco vai
parar de fazer a quimioterapia. Quando parar de fazer, é porque não tem mais
tratamento disponível. Para a gente não é menos uma quimioterapia, é mais uma.
Significa que a gente está vivendo com a doença. Há um estigma também relacionado
com a palavra paliativo. Para pessoas como eu significa o que há de mais
avançado na medicina e a possibilidade de você olhar para a pessoa sem pensar
apenas na doença que ela tem. Por isso eu comecei a me expor. Para mostrar o
que acontece. Existe uma biografia antes de uma doença.
Agência Brasil – Há outros preconceitos que
precisam ser abandonados?
AnaMi – Para uma mulher que tem câncer há muitos
estereótipos. Eu sou a menina da foto que está na orelha do meu livro. Eu tenho
cabelo cumprido, estou sempre arrumada e maquiada. Eu não tenho cara de
paciente. Para a nossa sociedade, a gente precisa ter uma cara para ser digno
da solidariedade de alguém! Quem olha para mim não diz que eu tenho câncer,
logo não legitima meu sofrimento. ‘O seu câncer é menor. Olha só você: está
bonita, está ótima.’ Eu administro bem isso, mas as pacientes em geral acham
que têm que entrar nesse estereótipo de aparecer com a cara de quem está
sofrendo e fazendo quimioterapia. Não estamos lutando para a medicina evoluir? Nossa
cabeça tem que evoluir junto.
Agência Brasil – Você tem conhecimento se o seu
ativismo mudou a maneira de como as pessoas percebem a doença?
AnaMi – Sim. Provavelmente, eu sou a primeira
paciente que se expõe de maneira tão pública a metástase por ter o tratamento
paliativo. Se câncer é um tabu, cuidados paliativos são um tabu maior ainda. Eu
vejo que algumas pacientes chegam para os médicos e dizem assim: ‘eu sei que
sou paliativa.’ Eles ficam travados. O médico foi educado na faculdade para
cuidar e curar pessoas, para vencer a morte. Então, não consegue olhar para
esse paciente e entender que existe uma finitude. É comum aquela história: ‘não
tem mais nada para fazer, você foi desenganada.’ Para mim, isso é que é
fracassar na doença, não é o paciente morrer. Morrer é da vida. Quando um
médico diz ‘não há nada para fazer’ é uma coisa horrível. Pode não ter nada
para fazer pela doença, mas tem muito a fazer pela pessoa. A gente precisa de
uma medicina que olhe para o paciente e não para o tamanho do nódulo dele. Sou
ativista dos cuidados paliativos porque nunca admiti ser tratada como uma
doença e nem me tratarem como uma paciente de câncer metastático. Sempre quis
ser tratada de maneira individual e ser considerada nas minhas escolhas. Essas
dizem muito sobre a forma como eu quero ser cuidada até o fim da minha vida. A
diferença das redes sociais para mim é isso: as pacientes estão tento acesso a
uma informação que não tinham, e estão se impondo mais nas consultas. Lógico,
ouvindo o que o profissional está ali vai dizer, mas sem o sentimento que do
outro lado da mesa tem um Deus e ele vai ditar tudo da sua vida. Vejo que há um
movimento grande em torno dos cuidados paliativos e que os médicos estão se
abrindo quanto a isso.
Agência Brasil – Sua visão sobre a saúde
pública mudou desde o seu primeiro diagnóstico acusando câncer?
AnaMi – Eu tenho plano de saúde privado, mas
acompanho muitas pacientes que são tratadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e
vejo que melhorou o acesso à medicação. As pacientes passaram a ter mais acesso
à informação, aprenderam a brigar por seus direitos. O SUS dá acesso a alguns
medicamentos paliativos. Também aumentou bastante o número de recursos à
Justiça para conseguir aquilo que ainda não está disponível, o que pesa para o
sistema e onera todo mundo. Mas estamos longe do que precisamos. Conheço uma
paciente que ficou quatro meses sem oncologista porque na unidade de saúde onde
ela era atendida, o médico se aposentou, mas o hospital não se preparou para
fazer a substituição. No SUS, pode ser mais complicado conforme o local que
está sendo atendido. Se não está em um centro de referência em oncologia, as
pacientes podem ficar abandonadas, sem acesso a medicações ou fazendo
tratamentos da forma mais tradicional. Para uma mulher conseguir fazer uma
mamografia tem uma espera danada e pode ser por isso diagnosticada muito tarde.
Não há como esperar Pra isso, foi criada por isso a Lei dos 60 dias.
Agência Brasil – A covid-19 traz riscos
para quem possa ter imunidade mais baixa. Você teve que aumentar os seus
cuidados?
AnaMi – É bem arriscado para mim. A medicação
que tenho hoje é uma quimioterapia oral. Eu tomo todo dia e minha imunidade está
constantemente muito baixa. Nesse momento, estou no mais puro isolamento. Eu
moro sozinha. Não mudou muito a minha rotina. Não saio de casa de jeito nenhum,
só quando é por causa do tratamento na clínica. Mas tomo todos os cuidados para
não me expor. A minha mãe é minha cuidadora. Quando estou mal, depois que
interno no hospital, quando tenho que fazer algum procedimento de radioterapia
ou quando fico debilitada, eu vou para a casa dela. Nesses últimos quinze dias,
eu tive uma baixa grande de imunidade. Normalmente, eu iria para a minha mãe.
Mas não fui porque ela estava com sintomas da covid-19 e, além disso, ela é do
grupo de risco porque está com mais de 65 anos. Mas me viro bem. Meus médicos
são muito acessíveis e monitoram temperatura, oxigenação. Estando bem, eu não
preciso sair de casa.
Edição: Bruna Saniele