Carla Araújo é comandante na Missão de Paz da ONU na África.
Carla Monteiro de Castro Araújo, 50 anos, é comandante na Missão de Paz da Organização das Nações Unidas na República Centro-Africana. Dentista de formação, mãe de um casal de filhos, a niteroiense está há mais de um ano longe de casa. Ela já deveria ter voltado para o Brasil, mas a pandemia do novo coronavírus (covid-19) adiou seus planos em cerca de 100 dias.
Carla entrou para o serviço de saúde da Marinha brasileira em 1997. Trabalhou na Unidade Médica Expedicionária da Marinha com gerenciamento de risco, controle e apoio à saúde. Formou-se na Escola de Oficiais em 2012. Desde abril de 2019, tem servido como conselheira de proteção e gênero na sede da Minusca (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana). Lá, estabeleceu e conduziu treinamentos para os 11 mil militares das tropas da ONU que estão no país.
Na semana passada, Carla recebeu o prêmio Defensoras Militares da Igualdade de Gênero da ONU 2019, por seu trabalho realizado no país africano. Em entrevista à Agência Brasil, Carla fala sobre a experiência de trabalhar em uma missão de paz, a vida longe dos filhos e os aprendizados na busca pela realização dos sonhos.
ABr – Como foi a sua trajetória até chegar à missão da ONU?
Carla – Entrei para a Marinha e servi logo em seguida com os fuzileiros navais. Os fuzileiros têm essa parte interativa, de participações de missões de paz, muito presente. Eu já estava acostumada a ver meus amigos irem para missão de paz. A ideia de vir foi uma decisão conjunta. Eu brinco que sempre trabalho em equipe, inclusive com a minha família. A ideia surgiu numa conversa com meus filhos sobre perseverar, nunca desistir dos sonhos. Eu dizia que quando eles crescessem eu iria por a mochila nas costas, iria para Cruz Vermelha, Médicos Sem Fronteiras, ONU. Vou sair em ajuda humanitária, eu dizia. Um dia, minha filha falou: ‘você fala em perseverar, mas por que você fica colocando isso para quando se aposentar? Por que não faz agora, pela Marinha?’. Pensei, é verdade. Então perguntei para eles, pois iria ficar um ano longe. Na época, minha menina tinha 11 anos e meu menino tinha 7. Eu vi a maturidade deles. Diziam: ‘você sempre apoiou nossos sonhos e a gente tem que te apoiar nos seus sonhos’. Todas as etapas do processo seletivo eles acompanharam, vibraram, então foi uma decisão conjunta. Eles entendem que vim por um motivo maior. Inclusive minha missão foi estendida em praticamente 100 dias e toda vez que vinha a solicitação para saber se eu poderia estender mais um pouco, por causa do covid, antes de responder eu sempre liguei para casa e conversei com eles.
ABr – Quais foram os maiores desafios na chegada à República Centro-Africana?
Carla – A Marinha me deu um background muito legal, consegui aproveitar muita coisa aqui. Nos últimos cinco anos, antes de vir para cá, eu estava trabalhando com planejamento estratégico, gestão de riscos, e isso me ajudou a ter uma visão no meu trabalho aqui. A visão de gestão me ajudou a implementar algumas coisas, e melhorar a efetividade dos processos. Quando cheguei aqui foi um choque, claro, a realidade é muito diferente, muito sofrida. Foi minha primeira experiência em missão de paz, em ambiente internacional, então tem o desafio do trabalho, dos relacionamentos interpessoais, das culturas diferentes, de você se posicionar, de encontrar o seu lugar naquele mundo novo. O início foi bem intenso, mas eu nunca acreditei em coisas fáceis. Isso me ajudou a reunir minhas forças, reunir tudo o que eu já tinha aprendido ao longo da vida e colocar em prática todas as minhas ferramentas para tentar fazer a diferença para as pessoas daqui.
ABr – Em que consiste o seu trabalho na Missão de Paz?
Carla – As pessoas da minha função, de gender advisor, assessora de gênero, cuidam da proteção dos civis, proteção das crianças, prevenção da violência sexual relacionada aos conflitos armados, e prevenção do abuso e exploração sexual. Então a gente trabalha com um leque grande de situações. Eu costumo dizer que o gênero está em tudo, permeia todas essas situações. Os civis são afetados de forma diferente, dependendo se são homens, se são mulheres, meninas ou meninos. Nós trabalhamos ao longo do ano para aumentar a rede de pontos focais (pessoas-chave) em pontos estratégicos e dentro dos contingentes. O que a gente planejou para o ano de 2019 foi de expandir essa rede de pessoas-chave. Quando eu cheguei na Missão tínhamos 36, mas eles estavam somente em dez locais do país. Hoje temos 91 pontos focais, em 46 localidades. Conseguimos uma abrangência muito maior. A ideia era passar o conhecimento para os pontos focais, e que eles repassassem para as tropas, para todos os nossos 11 mil militares que estão no terreno. E foi uma alegria muito grande ver que, logo no primeiro mês, os nossos pontos focais já tinham conseguido treinar um terço da nossa tropa. Eu fiz odontologia e, ao longo da faculdade, a primeira coisa que o aluno aprende ao olhar a radiografia é procurar cárie. Ao longo das disciplinas, eu comecei a ver o nível do osso, se tinha alguma inflamação óssea, se tinha algum problema de canal. A gente só enxerga o que a gente sabe. Então, aqui, o nosso pessoal tem que saber o que tem que procurar, porque a mentalidade do militar num primeiro momento é procurar um grupo armado, procurar pessoas com armamento. Mas a gente tem que prestar atenção em todo o ambiente ao redor, o quanto as mulheres têm que andar para pegar água, coletar lenha, frutos. Muitas delas andam muito, sozinhas, em estradas que às vezes não têm visibilidade, no meio do mato. Quando vou nessas localidades, vou prestando atenção ao longo da estrada. Muitas vezes não se tem visibilidade a três, quatro metros para dentro do mato, então um grupo armado poderia estar escondido ali. Eles escutam o barulho da viatura e se escondem. A gente passa, eles voltam. Então a ideia é tentar proteger da melhor forma possível os mais vulneráveis dentro da população, que são as mulheres e as crianças.
ABr – Você trabalha em um ambiente muito masculino. Teve alguma dificuldade em relação a isso?
Carla – Quando eu cheguei, até senti diferença, mas não foi com relação a homens ou mulheres, foi em relação à cultura. O brasileiro é um povo muito caloroso. Nos primeiros dias, eu saía dando bom dia, abraçando as pessoas, especialmente as mulheres. E eu notei que as muçulmanas, principalmente, se sentiam desconfortáveis. A primeira vez que abracei uma (muçulmana), ela ficou dura que nem um pau. Pensei: ‘fiz besteira, consegui causar um mal-estar internacional’. Um dia, eu estava na minha sala e essa oficial chegou e perguntou: ‘você pode me dar um abraço? Porque hoje a gente não se encontrou e o dia está tão difícil, estou precisando daquele abraço que você me dá’. Foi tão gostoso. Eu brinco, mas na hora de falar sério, falo sério. Eu nunca vi, nem por parte de general quatro estrelas, nem de nenhum soldado, eles me tratando de forma não profissional. Não sofri nenhum tipo de preconceito por ser mulher. Consegui ser respeitada por ser brasileira e como profissional. Trabalhei 17 anos no meio de fuzileiros navais, meu ambiente é masculino.
ABr – As mulheres nas missões de paz da ONU são apenas 6%. Porque são tão poucas e o que tem sido feito para aumentar o número de mulheres?
Carla – A ONU dá ênfase e estímulo para que os países mandem mulheres, principalmente em tropas. Mas a gente sabe que, às vezes, os países não mandam porque não têm. A maioria das mulheres vai para função administrativa ou de saúde. Nem todos os países têm mulheres como infantes. Quando houve a premiação, fiz um apelo para os países investirem nas mulheres porque, se a Marinha não tivesse investido em mim, se o Brasil não tivesse investido, eu não estaria aqui. Não teria conseguido fazer esse trabalho. É um investimento por oportunidades iguais desde o início da carreira. Meu segundo apelo foi às mulheres, que elas não desistam do sonho, que acreditem na capacidade delas, que corram atrás, batalhem, queiram vir. Em momento algum posso dizer que foi fácil, muitas vezes tive dúvida por ter deixado a minha família, mas quando comecei a ver o resultado do trabalho, foi uma recompensa muito grande.
ABr – Como é morar na RCA?
Carla – Eu me sinto em casa. A vegetação é parecida, o clima é parecido. Me sinto na Bahia, comendo pimenta o tempo todo. Nas horas livres eu ligo para a família, ligo para o namorado, faço comida e já está na hora de dormir. Agora o nosso toque de recolher passou para as 20h, antes era às 22h. Às vezes a gente se juntava na casa de um, jantava junto, ia para um restaurante aqui, agora ficou mais difícil. Aqui os restaurantes são bons, os produtos são bons, tem muito produto importado da França, da Itália.
ABr – O que significa o prêmio Defensoras Militares da Igualdade de Gênero da ONU?
Carla – O prêmio foi uma imensa surpresa. Eu vim substituir a Márcia Braga, que tinha ganhado o prêmio no ano passado. Toda vez que eu trabalhava muito, meus amigos diziam que eu não tinha que trabalhar tanto assim, que o prêmio não viria de novo para a Minusca. De uma certa forma, isso me liberou, porque como eu não achava que o prêmio viria uma segunda vez, eu desconectei de todo o protocolo e desenvolvi a minha forma de trabalhar, como eu achava que era melhor. Atuei mais como gestora de empresas do que como assessora de gênero num primeiro momento, porque eu peguei um processo existente e trabalhei com melhoria de processos e uma série de indicadores para aumentar a efetividade na minha equipe. Às vezes eu bolava umas estratégias que me pareciam muito ousadas, muito maiores do que eu ia ter perna pra fazer. Eu estruturava o plano de ação e levava para o general. Daí ele olhava e dizia ‘muito bom, pode botar em prática’. Sempre falei que aqui tem muito sofrimento, você tem que gostar do que faz, senão não vale a pena. E eu tinha que fazer valer a pena, eu estava longe dos meus filhos. O prêmio foi um aviso de Deus para eu não duvidar da minha intuição, sempre seguir o coração, fazer as coisas de forma apaixonada.
Edição: Fernando Fraga